Parnaso, um dos afrescos de Rafael
Rafael e o afresco Parnaso na Stanza della Segnatura
Contratado por Júlio II (pontificado de 1503 a 1513) para executar um ciclo de afrescos decorativos nas habitações eclesiásticas do Vaticano, Rafael Sanzio (1483-1520) transferiu-se de Florença para Roma, no mesmo período que Michelangelo (1475-1564) pintava o teto da Capela Sistina.
De acordo com Gombrich (2000) Rafael demonstrou seu total domínio do desenho construindo composições perfeitamente equilibradas na série de afrescos nas paredes e tetos das quatro salas[1], com a ajuda de seus discípulos entre 1508 e 1524. Rafael foi o artista que realizou o que a geração anterior se empenhou em conseguir: uma composição plena de perfeição e harmonia.
O primeiro salão pintado por Rafael foi a Stanza della Segnatura. A Sala do Selo ou Stanza dell sello, a pintura em afresco foi executada entre 1509 e 1511.
O espaço, com cenas capturadas de histórias mitológicas, executadas com extrema alegria e exuberância, levou o nome do mais alto tribunal da Santa Sé, presidido pelo Sumo Pontífice, que costumava sentar-se nesta sala em torno de meados do século XVI.
Os afrescos executados refletem a função do ambiente, estabelecido provavelmente por um teólogo, e representam as categorias mais altas do espírito humano. A teologia é descrita na Disputa do Santíssimo Sacramento e a filosofia, na Escola de Atenas. A justiça é expressa na representação do Cardeal, as virtudes teológicas e a lei, enquanto a poesia se encontra no Parnaso com Apolo e as musas.
Obras em Destaque
Lunetas e cenas explicativas retangulares fazem parte da decoração das paredes, juntamente com a pintura da abóbada, que apresenta quatro tondi[2] com as alegorias: Teologia, Filosofia, Justiça e Poesia.
Parnaso – A Poesia e Apolo na Stanza della Segnatura
Localizada na parte norte da grande sala, a pintura representa o mitológico Monte Parnaso, a montanha sagrada.
No centro da composição, acima da relva molhada pelas águas da fonte Castália e da fonte Hipocrene[3], o deus Apolo toca a lira de braço, rodeado por poetas gregos e latinos e, pelas nove Musas, protetoras das artes.
Apolo, reconhecido como o sol da geração olímpica, é filho de Zeus e de Leto[4], e irmão gêmeo de Ártemis, a deusa da lua.
Com um rosto de beleza radiante e juventude eterna, uma cabeleira loura que cai em cachos graciosos sobre seus ombros, alto e desembaraçado, com uma atitude e um porte sedutores, Apolo é representado na maioria das vezes tocando uma lira de ouro inventada e outorgada como presente por seu irmão Hermes[5].
O deus de Delos[6] foi amplamente cultuado em Roma. A Antiguidade clássica, e artistas dos períodos Renascentista e Barroco mostraram-no como um deus de beleza perfeita, símbolo da harmonia entre corpo e espírito.
Deus da música, da poesia, da eloquência, das artes e notável flecheiro, Apolo “preside os concertos das nove Musas”. (COMMELIN, 2008, p. 35)
De acordo com Hesíodo[7] (77-79, 2013, p. 35-37) as Musas foram concebidas após o pedido dos deuses para que Zeus criasse seres divinos para louvar os grandes feitos e o universo. Assim, Zeus se deitou com a deusa da memória (Mnemose), durante nove noites consecutivas. Por volta de nove meses depois, a deusa deu à luz nove filhas: Calíope (poesia heroica e oratória), Clio (história), Euterpe (música), Melpómene (tragédia), Thália (comédia), Terpsícore (dança), Erato (poesia lírica), Polímnia (hino sagrado) e Urânia (astronomia).
Propiciadoras de inspirações e habitantes do Monte Parnaso, local paradisíaco, terra da poesia e música, as nove Musas permanecem ali rodeando as nascentes d’água e riachos. Nesses locais dançam e cantam, acompanhadas pela lira de Apolo.
Rafael representa nove poetas da antiguidade e contemporâneos outros nove. Os poetas representados conversam entre si e parecem ignorar o concerto do deus musicista.
No alto, à esquerda do Apolo, reconhecem-se quatro poetas épicos: Dante Alighieri (1265-1321), de perfil; Homero (ca. IX-VIII a.C.) de azul; Públio Virgílio (70-19 a.C.) e Angelo Poliziano (1454-1494), tradutor dos poemas de Homero. No entanto, segundo alguns, esse último apresenta o autorretrato de Rafael.
Na parte inferior, à esquerda, encontram-se quatro poetas líricos, segundo certos autores: o humanista e poeta romano, Francesco Petrarca (1304-1374), os poetas gregos: Alceo (621-560 a.C.) e Anacreonte (ca. 572-485 a.C) e as poetisas gregas: Corina (ca. 530-480 a.C.) e Safo (ca. 630-580 a.C.) vestida de azul, segurando um pergaminho, sobre o qual, inscrito em latim, está seu nome.
Do lado direito, alguns autores identificam: Ludovico Ariosto (1474-1533), poeta italiano; Píndaro (517-438 a.C.) poeta grego; Quinto Horácio Flaco (65-8 a.C.) poeta lírico e satírico romano, amigo de Virgílio.
Os poetas latinos: Publios Ovídio[8] Naso (43 a.C.- 17 d.C.), Albius Tibullus (ca. 55-19 a.C.), Gaius Catullus (ca. 84-57 a.C.) e Sextus Propercio (43 a.C-17). E, por último: Giovanni Boccaccio (1313-1375) o grande narrador italiano do século XIV, que imortalizou a Comédia de Dante Alighieri e a renomeou de A Divina Comédia.
O tondo pintado na abóbada complementa o afresco Parnaso, e se liga às cenas retangulares com os temas de Apolo e Marsias[9] e a Contemplação da Esfera.[10]
A deusa alada está sentada em um trono entre nuvens e rodeada por dois putti[11] . Coroada com folhas de louro ela segura um livro e uma lira, símbolos de Apolo, o deus da música e da poesia.
[1] A primeira sala é a Stanza della Segnatura. A segunda sala – A Stanza di Eliodoro – está decorada com quatro episódios da Bíblia e a história da igreja toma por tema a ajuda que Deus confere a seu povo nos tempos de dificuldade. O terceiro ambiente – Stanza dell‘Incendio di Borgo – trata dasaspirações políticas do Pontífice reinante, Leão X, em episódios anteriores, durante o império carolíngio ou de Carlos Magno (reinado de 768 a 814). A quarta sala – di Costantino – foi pensada em homenagem a Constantino I (306-337) o imperador romano que se converteu ao Cristianismo. Nas paredes estão representados quatro episódios de sua vida que testemunham a derrota do paganismo e o triunfo da religião cristã. A pintura dessa sala só foi terminada por seus auxiliares, após a morte do grande artista, aos trinta e sete anos.
[2] Composição realizada no interior de uma forma circular, chamada de Tondo ou de Tondi, quando no plural. A forma foi usada por muitos artistas do Renascimento.
[3] Nascente de água doce situada na encosta do Monte Hélicon, tradicionalmente consagrada a Apolo/Febo e às Musas, que teria brotado de uma pedra fendida por uma patada do cavalo Pégaso. Considerada a fonte de inspiração poética, por intermédio das Musas.
[4] Filha dos titãs Ceos e de Febe, amada por Zeus, Leto, chamada de Latona pelos romanos, e seus dois filhos pequenos foram perseguidos, incansavelmente, por Hera, ou Juno, pelos romanos.
[5] Hermes, chamado de Mercúrio pelos romanos, é neto de Atlas. Uma de suas atribuições é transmitir mensagens dos deuses. Inventor da lira, Hermes trocou-a pelo caduceu de Apolo.
[6] A ilha de Delos está localizada no centro do grupo de ilhas conhecido como Cíclades, no mar Egeu. Delos foi considerada como santuário de Apolo na Antiguidade Clássica.
[7] O poema Teogonia, de Hesíodo (ca. VIII-VII a.C.) descreve a origem e a genealogia dos deuses. O poeta segue narrando a história de Zeus como governante do mundo, que tem o poder de unir e manter a existência da humanidade, por meio das batalhas e das uniões sagradas com deusas e mortais.
[8] Em Metamorfoses, influenciado pelos poemas épicos e pela genealogia grega, Ovídio (43 a.C.- 17 d.C.), descreveu em cerca de doze mil versos, em latim, as histórias dos deuses e heróis. A obra que abrange a cosmogonia e a etiologia, fundiu ficção e realidade, transformou personagens e deuses mitológicos em animais, plantas, rios e pedras, no princípio dos tempos e chegou até o tempo do poeta e de Augusto (63 a.C. -14 d.C.). Ovídio seguiu o conceito de Hesíodo na divisão cronológica da mitologia clássica e uniu os deuses aos mortais nas descrições sobre o amor, incesto, ciúme e morte. Os personagens ganharam humanidade e se afastaram das solenes divindades.
[9] Apolo foi desafiado pelo sátiro Mársias, que tendo inventado a flauta (ou encontrado a flauta que pertencia à Atena), ficou muito orgulhoso do seu talento musical. Os dois acertaram que o vencedor poderia estipular o castigo ao perdedor. Mársias foi pendurado em uma árvore e esfolado vivo por Apolo, que venceu a disputa.
[10] O tema se refere a Urânia, Musa da Astronomia, representada com o globo celeste. O retângulo, A Contemplação da Esfera, se liga também a Alegoria da Filosofia.
[11] Crianças aladas ou anjos representados nas artes visuais são chamados pelos italianos de putti ou putto no singular.