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Surrealismo: por uma vanguarda revolucionária, por uma arte política

Por Equipe Editorial - maio 17, 2024
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Sob uma perspectiva crítica, acadêmica e histórica, abordaremos o Surrealismo — movimento artístico que se iniciou nos anos 20 e que esteve intimamente relacionado às recém-descobertas da psicanálise.

“Qual é a relação da ideologia – para não mencionar a própria obra de arte – com a realidade social e histórica mais fundamental de grupos em conflito e como deve ser entendida esta última se formos capazes de ver os objetos culturais como atos sociais, ao mesmo tempo, disfarçados e transparentes?”

Fredric Jameson, Prefácio à edição americana de Marxismo e Forma, 1985.


Eric Hobsbawn começa o 2º capítulo sobre as artes do seu livro Era dos Extremos com uma observação bastante pertinente, porém, pouco difundida. Ele diz que:

É prática dos historiadores – incluindo este – tratar os fatos das artes, por mais óbvias e profundas que sejam suas raízes na sociedade, como de algum modo separáveis de seu contexto contemporâneo, como um ramo ou tipo de atividade humana sujeito às suas próprias regras, e capaz de ser julgado como tal [o contrário também é verdade – comentário meu[1]].

Contudo, na era das mais extraordinárias transformações da vida humana até hoje registradas, mesmo esse antigo e conveniente princípio de estruturar um estudo histórico se torna cada vez mais irreal(…) [Isso] porque as forças que determinavam o que acontecia com as artes(…) eram esmagadoramente exógenas.[2]

Hobsbawn se refere ao século XX, período histórico em que a fronteira entre a arte e a vida foi se tornando cada vez mais sutil, e quando certas vanguardas artísticas foram se apropriando profundamente de temas políticos e sociais. Uma delas é o surrealismo.

Esta vanguarda enfatiza o papel do inconsciente na atividade criativa, estimulando a irracionalidade, a livre associação de ideias, a imaginação, o sonho, o absurdo, o irreal.

Tudo isso em detrimento do lógico, racional e ordenado.[3] E é justamente nesse aspecto que o surrealismo vai se colocando como uma corrente artística contestadora.

Contestadora na medida em que nega os então consagrados pressupostos positivistas e burgueses de razão, lógica e eficiência (condições para uma alta atividade produtiva), colocando em xeque as concepções reinantes de “realidade”, consideradas repressivas pelos surrealistas.

Sigmund Freud e Karl Marx, de modos diferentes, sustentaram que as relações entre as pessoas ou entre grupos sociais estavam veladas e escondidas pelo que era normalmente aceito como “realidade”.

Os surrealistas viam as ideias dos dois autores citados acima como meios de criticar a ordem social existente[4] [que não era um dado a priori, mas sim realidade mutável – comentário meu]

Walter Benjamin escreve, em 1929 (período em que a politização do movimento surrealista já se encontra madura), um ensaio onde afirma que “no momento, os surrealistas são os únicos que conseguiram compreender as palavras de ordem que o Manifesto [Comunista] nos transmite hoje”[5]

Podemos perceber a crítica surrealista à cultura maximizada pela eficiência e racionalidade produtivas no consagrado texto de André Breton — Nadja — em que a personagem que dá nome ao livro se inquieta em especular o que as pessoas de segunda classe de um metrô faziam para viver, já que elas não trabalhavam, e Breton (que é também personagem do livro) lhe repreende pela preocupação que ela revela pelo trabalho. A indagação da moça se justifica se pensarmos que o conhecido lema de F. W. Taylor de “abaixo a vadiagem” estava na ordem do dia.

Tendo em vista as mudanças na produção industrial que se deram após a 1ª Guerra Mundial, bem como a nova organização das fábricas baseadas em princípios tayloristas e fordistas de produção[6] entendemos o quanto a nova forma de organização da produção de bens de consumo interfere diretamente na sensibilidade dos indivíduos e na concepção de vida dos mesmos, e percebemos o quanto a arte se ocupou destes problemas, inclusive posicionando-se a respeito.

E é contra o lema do homem, como produtor eficiente e incansável, sem direito ao ócio, ao descanso ou à improdutividade (inclusive vistos como práticas negativas) que se posiciona André Breton, o idealizador do surrealismo.

Em contrapartida aos sistemas de produção capitalista, o surrealismo também se posiciona contra os sistemas de consumo capitalista. Com o advento da era comercial e o desenvolvimento das grandes indústrias (séc. XX) a matéria deixa de existir para transformar-se em mercadoria. Tudo é mercadoria. Tudo é comerciável. “A necessidade como impulso puramente material e físico (como algo ‘natural’) foi substituída por uma estrutura de estímulos artificiais, anseios artificiais, de tal forma que não é mais possível separar, neles, o verdadeiro do falso, a satisfação primária da satisfação de luxo”[7] [grifo meu].

Assim, percebemos o fenômeno do consumo excessivo, mais que necessário, engendrado por sistemas de estímulos artificiosos do mundo da superprodução industrial[8].

A criação de falsas necessidades carrega consigo também a criação de mil utilidades para os objetos. Todo objeto de consumo se torna um objeto útil e necessário. Têm uma função definida e prática. O surrealismo se contrapõe a esse conceito utilitarista e consumista na medida em que destitui os objetos artísticos da sua funcionalidade e sentido convencionalizados, por encontrarem-se em contextos alheios aos seus originários ou “pela interconexão violenta e arbitrária de duas realidades tão distintas e não relacionadas quanto possível”.[9]

Uma obra que exemplifica essa atitude é a obra “Objeto: desjejum em pele” de Meret Oppenheim, onde uma xícara, um pires e uma colher – cujas funções nos são claramente definidas – estão todos cobertos por pele animal.

Estes objetos encontram-se na impossibilidade de serem úteis à finalidade que formam criados. Nesse sentido, essa obra é estritamente antifuncional, irracional, ilógica. Não produtiva. Não consumível.

Em vista de tais posicionamentos André Breton e muitos surrealistas foram contrários à sociedade burguesa e aos sistemas de relações sociais e produção que esta engendrou, tendo eles grande admiração por teóricos e líderes comunistas.

De Marx a Lênin, essa geração de mais de meio século alimentou tal efeverscência de ideias, o problema de sua solução levantou tantos debates, os pontos de vista chocaram-se sempre ao seu respeito com tal violência e, por fim, o que devia prevalecer prevaleceu tão bem, que não posso deixar de olhar a constituição do socialismo científico como uma escola modelo.[10]

Breton, como outros artistas, via a necessidade de modificar radicalmente como as condições da vida social e política se apresentavam; e considerava a prática artística o meio através do qual tal processo se daria. Sobre isso ainda ressalta:

Como admitir que o método dialético [marxista] não possa aplicar-se validamente senão à resolução dos problemas sociais? Toda ambição do surrealismo é fornecer-lhe possibilidades de aplicação, de modo nenhum concorrentes no campo consciente mais imediato[11]

Nesse sentido, o surrealismo se proclama revolucionário. Para Breton, a arte “tem que ser revolucionária, tem que aspirar a uma revolução completa e radical da sociedade”[12]

Qual é o papel concreto que a vanguarda assumiu nos acontecimentos dos anos do entre guerras? Foi o da “premonição” do colapso da sociedade liberal burguesa.

Se, com a quebra da Bolsa de 1929, o mundo viu a queda do liberalismo econômico seguido do político, as vanguardas artísticas já as previram em fins dos anos 1910. O que elas não previram foi a copiosa sucessão de regimes autoritários que se seguiram a essa queda.

Assim, Breton e os surrealistas cumpriram o objetivo que se propuseram de “desencadear no homem a sacudidela emotiva” necessária à ação política e revolucionária, já que, segundo Walter Benjamin, antes deles, ninguém havia percebido de que modo a terrível situação em que as pessoas se encontravam poderia despertar a revolução. [13]

Benjamin ainda afirma que o objetivo surrealista era mobilizar e direcionar as energias da embriaguez para a revolução, transformando o desencantamento e a nostalgia em força para a luta revolucionária pela transformação das condições materiais de vida.

A esquerda revolucionária, percebendo a afinidade com o movimento, em grande parte se alia às vanguardas artísticas.

Já a direita, assim como os regimes ditos fascistas, também compreenderam que para julgar o pensamento da esquerda não seria suficiente perseguir apenas os marxistas, mas também interditar muito da arte de vanguarda (nem todo movimento de vanguarda era de esquerda, a tomar como exemplo o futurismo, aliado do fascismo italiano).

Contudo, a vanguarda viu a política tomar rumos quase imprevisíveis. Com a ascensão de Stálin ao poder soviético, e com toda sua política de militarização, repressão e ortodoxia, os surrealistas colocaram-se contra o Comintern (apesar de terem apoiado a IC nos anos da Revolução de 1917) e contra o dogmatismo político e doutrinário stalinista. O próprio Breton que entra no PC francês, acaba se desvinculando do mesmo, por dissidências ideológicas.

“A tragédia dos artistas modernistas de esquerda ou de direita foi que(…) os novos regimes autoritários da direita e da esquerda preferiram”[14] toda a arte tradicionalista e clássica já comodamente aceita. Imperou na União Soviética o modelo artístico do realismo socialista, genuinamente acadêmico, esvaziado das questões artísticas proclamadas pelas vanguardas (tanto de direita quanto de esquerda) e intimamente vinculadas à propaganda personalista de Stálin.

De qualquer forma, o papel revolucionário do surrealismo de incitamento e problematizarão das questões políticas então latentes nas sociedades do entre guerras é inquestionável. Se seu objetivo final não foi alcançado, o de muito teóricos marxistas também ainda não foi.

A história não é um fato dado, e muito ainda está por se fazer. Resta a nós preservarmos sempre aquela “esperança e força revolucionária” da qual o surrealismo nunca abriu mão.

Texto: Suzana da Costa Borges Longo
Graduada em Artes Visuais pela ECA-USP, atualmente é Mestranda em Estudos Contemporâneos das Artes pela UFF (RJ).


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Fontes

[1] É também prática dos historiadores e críticos da arte tratar a produção artística como um acontecimento independente de seu contexto histórico e social.

[2] HOBSBAWN, Eric. Era dos Extremos: o breve século XX: 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 483.

[3] “A atividade realista, inspirada do positivismo(…) parece-me claramente hostil a todo desenvolvimento intelectual e moral.” BRETON, André. Manifestos do Surrealismo. Rio de Janeiro: Moraes Editores, 1969. p. 28.

[4] FER, Briony, BATCHELOR, David e WOOD, Paul. Realismo, Racionalismo, Surrealismo: a arte no entre-guerras.São Paulo: Cosac & Naify, 1998. p. 180.

[5] BENJAMIN, Walter. “Surrealismo: o último instantâneo da inteligência européia” [1929]. In Magia e técnica , arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense , 1994. (Obras escolhidas; v.1). p. 35.

[6] FRIEDMANN, Georges. La crise du progrès, apud FER, Briony, BATCHELOR, David e WOOD, Paul, op. cit., p. 177.

[7] JAMESON, Fredric. Marxismo e Forma: teorias dialéticas da literatura do século XX. São Paulo: Hucitec, 1985. p. 79-80.

[8] PEDROSA, Mario. Mundo homem, arte em crise. São Paulo: Perspectiva, 1986. p. 161. “Hoje a necessidade… a produção em massa a inventa.”

[9] JAMESON, Fredric. Op. cit., p. 80.

[10] BRETON, André. Manifestos do Surrealismo. Rio de Janeiro: Moraes Editores, 1969. p. 231.

[11] Ibidem, p. 167.

[12] BRETON, André e TROTSKI, Leon. Por uma Arte Revolucionária Independente. São Paulo: Paz e Terra, 1985. p. 37-38.

[13] BENJAMIN, Walter Op.., p. 25. cit

[14] HOBSBAWN, Eric. Op. cit. p. 187.

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