Opinião

Repensar a crítica de arte hoje: para quem, por quem e sobre quem?


Luciara Ribeiro

No dia 2 de julho, o Arteref publicou o texto Críticos de arte brasileiros: 18 nomes essenciais, e, infelizmente, a matéria pecou em diversos aspectos. O próprio título do texto já apresentava um problema a ser revisto: o termo “essencial”. 

O uso dessa palavra da forma que foi posta contribui para a criação de uma visão única e centralizada em poucas vozes. Em vista disso, apresentamos aqui a necessidade de refletirmos sobre tal termo e o que significa falar de 18 críticos “essenciais” para as artes brasileiras.

Obviamente, não estamos questionando o trabalho desenvolvido pelos profissionais citados na matéria, nem a sua relevância no contexto da produção artística e crítica no país. Reforçamos aqui a  importância e competência de cada um deles. O que questionamos é a continuidade de estruturas de hierarquização e exclusão no sistema artístico, sendo a linguagem um método de reforço delas. 

Não podemos esquecer que nenhum termo é neutro e que quando dizemos que alguns são mais essenciais do que outros, justificamos simbolicamente os poderes e exclusões vigente nesse meio. 

Outro ponto a ser revisto pela matéria diz respeito aos perfis dos citados. Entre os 18 nomes, 13 são de homens e apenas 5 são de mulheres. Todos são brancos, cis, a maioria desenvolve outras atividades, como curadoria, docência e gestão cultural, e atua por no mínimo uma década no setor. Esse dado, além de revelar a pouca diversidade de gênero e étnico-racial, demonstra também que houve pouca preocupação em incluir na matéria  o trabalho de críticos mais jovens e com poucos anos de carreira.

Olhar a produção desses críticos também enriquece a própria crítica e contribui para a renovação nas artes. O tempo de carreira não pode ser o único critério que dá validade a uma lista e os jovens profissionais que vem tentando renovar a crítica também são “essenciais” ao campo.


Qual o papel da crítica de arte hoje?  Como reconhecer um crítico de arte? O que significa ser crítico?

Diversos teóricos e atuantes das artes vêm fazendo essas perguntas nos últimos anos. Não é de hoje que debates em torno de uma possível “morte”, resistência ou ressignificação da crítica de arte abre e esquenta debates no Brasil. Não pretendemos aqui responder tais perguntas, e sim, lançar proposições que podem nos auxiliar a compreendê-las pelo prisma crítico que envolve a democratização de seus espaços.

Fazer crítica de arte não é um processo fácil e requer uma pesquisa comprometida, entendimento e articulação dentro do setor das artes. Cabe ao crítico analisar, observar, formular e reformular algumas maneiras possíveis de se pensar e de se fazer arte, arejando novas visões, conceitos e redes.

Historicamente, a crítica surgiu no contexto dos Salões de arte dedicados a exibição das produções acadêmicas. Naquele momento, apenas uma parcela da produção artística estava sujeita a tal estudo. Entretanto, de lá pra cá, muita coisa mudou, e, atualmente, há muitos campos para a produção e atuação da crítica. Um exemplo disso, está na ampliação das linguagens exploradas e na especificidade de estudo que alguns críticos passaram a ter, sendo possível reconhecermos críticos focados em algumas áreas, como a performance, o audiovisual, as instalações, etc. 

Uma das entidades que representa a categoria é a Associação Brasileira de Críticos de Arte (ABCA). Fundada em 1949 e considerada “a mais antiga associação brasileira de profissionais da área das artes visuais” no país, a ABCA surgiu como um desdobramento das ações da Associação Internacional de Críticos de Arte (AICA), fundada em 1948, em Paris, e teve entre os seus primeiros membros Sérgio Milliet, Mário Barata, Antonio Bento e Mário Pedrosa.

Segundo o site da ABCA, o objetivo da instituição é “reunir os críticos de artes visuais”, englobados em diferentes áreas, como os identificados como “críticos de arte, pesquisadores, historiadores, teóricos, ensaístas, jornalistas culturais e professores de história da arte e de estética”. Essa variedade de áreas está associada com a dissolução da função da crítica conforme as mudanças ocorridas no circuito artístico, o que faz com que, atualmente, o crítico seja visto mais como um jornalista cultural, um curador e um pesquisador. 

Entre os critérios para se tornar um associado da ABCA e ser reconhecido como crítico, deve se ter pelo menos 5 anos de experiência em publicação de textos de arte, um critério que comprovaria o empenho de tal profissional em promover reflexões sobre  o campo das artes a longo prazo. 

Escrever sobre arte e apresentar questionamentos propositivos é o elemento principal na carreira de um crítico. Não obstante, apesar do tempo de atuação ser relevante – assim como também  ser um membro da ABCA -, essas não são as únicas vias possíveis para o entendimento de um profissional como um crítico de arte. 

Nesse sentido, um dos pontos importantes é entender os espaços de crítica para além das tradicionais páginas dos jornais, revistas e catálogos expositivos. Pois, apesar desses veículos serem importantes, eles são integrados ao sistema das artes e suas redes de contato, o que  pode impossibilitar, em alguns casos, o surgimento de debates mais acirrados.

Ao expandirmos as noções de quem é crítico e de como essa atuação ocorre, entenderemos que a contemporaneidade apresenta outros modos de produção crítica. Devemos ter cuidado também para não acharmos que qualquer produção textual em artes seja crítica. Mas, vale entender que a crítica já não se apresenta mais do mesmo modo que era reconhecida na década de 1960. As estruturas atuais são outras, e entender isso é um ponto fundamental para uma renovação. 

Talvez, a crítica de arte hoje exija novos olhares. É provável que modelos, conceitos e definições que marcaram o nosso passado artístico já não sirvam mais para o presente, ou, que necessitem ser revistos e redefinidos: a crítica de arte é um deles.  


Quem também faz crítica hoje?

Ao entender que a crítica de arte pode ocupar espaços múltiplos e a atuação de seus profissionais englobar áreas distintas, apontamos aqui as possibilidades de olharmos algumas produções textuais que foram construídas nos últimos anos pelo viés da crítica.

Partindo disso, destacamos a seguir o trabalho de profissionais empenhados em construir novas possibilidades de pensar a contemporaneidade, contribuindo também para uma produção capaz de repensar a o próprio ofício. Os nomes apresentados são de profissionais que atuam como pesquisadores, curadores, ativistas, artistas etc, que, com um trabalho sério e dedicado, visam promover uma escrita abrangente, comprometida e questionadora.

Entender os seus escritos também como crítica de arte pode ser uma maneira de olhá-los por outros ângulos. Não buscamos aqui reproduzir a proposta de listar os profissionais, e sim, dar pistas para ampliarmos as visões sobre quem faz crítica hoje. 


Thiago de Paula Souza, que atua principalmente como curador autônomo é um dos nomes que têm circulado entre espaços artísticos brasileiros e internacionais. Com uma carreira de destaque (ele foi um dos curadores da 10ª Bienal de Berlim – We don’t need another hero – ao lado da reconhecida curadora Gabi Ngcobo), Souza vem contribuindo para as artes brasileiras com textos e projetos que potencializam deslocamentos possíveis entre espaço e linguagem nas artes contemporâneas.

O texto I’m not who you think I’m not, a manifesto (Eu não sou quem você pensa que eu não sou, um manifesto (?)) escrito durante a curadoria da 10ª Bienal de Berlin, traz a possibilidade de comprovar isso, quando aponta a recusa como ação de reelaboração da subjetividade dos corpos e histórias, pronunciando, através deste lembrete, o repúdio e o descarte como uma via crítica para as artes. 

Diane Lima, que se assume como curadora, pesquisadora e crítica, assim como Thiago de Paula Souza, já desenvolveu projetos no exterior, e se preocupa em promover debates decoloniais nas artes contemporâneas. Em seu texto “Não me aguarde na retina”, publicado em dezembro de 2018, na Revista SurConectas, ela menciona a importância de acessar os campos artísticos “em perspectiva decolonial”, e que, ao fazermos isso, alcançamos a compreensão de que existem “outras perspectivas de conhecimento” possíveis, abdicando do “sistema de verdades” e criando estruturas estéticas e éticas para as artes.

Jota Mombaça, além de artista visual e pesquisadora, também contribui para as artes com textos críticos. Em Pode um cu mestiço falar?, Mombaça comenta que redefinir campos das artes requer partir da noção de que alguns corpos foram “subalternizados” pela estrutura social, racial e colonial do mundo. Por isso, Jota propõe que sejam esses corpos os propositores na revisão das linguagens, posturas, pensamentos, autorias, imagens, etc, e entende este como caminho possível para construções artísticas distópicas e transcendentes.

O artista visual e curador Jaider Esbell também possibilita através de sua atuação modos de revisionismos críticos. Além de repensar os espaços, visões e modelos de exibição das produções artísticas, ele tem promovido conversas importantes sobre o entendimento das produções indígenas, sobre o significado de ser artista, de transitar entre campos artísticos indígenas e não indígenas, e de politizar as experiências.

O texto Arte indígena contemporânea e o grande mundo destaca a imprevisibilidade de “um componente trans-tempo histórico e trans-geográfico”  para pensar as artes contemporâneas e que as produções de artistas indígenas são impulsionadoras para esse alcance. 

Hélio Menezes, pesquisador e curador, também é um dos nomes que merecem ser mencionados. Além de ter sido um dos curadores da exposição Histórias Afro-atlânticas, realizada em 2018, nos espaços do Instituto Tomie Ohtake e do Museu de Arte de São Paulo – a mostra foi eleita pelo The New York Times como uma das melhores exposições de 2018 -, Menezes, atua de maneira crítica entre o espaço acadêmico, as instituições culturais e o contato com artistas contemporâneos.

Em Exposições e críticos de arte afro-brasileira: um conceito em disputa, texto dedicado ao estudo histórico, crítico e conceitual do termo arte afro-brasileira, o autor aponta a necessidade de entendermos a autoria negra para além dos processos racialistas que estruturam as artes e seus sistemas, aproximando-se mais das obras e de suas camadas de discussão. 


Outros espaços possíveis para a crítica de arte

Como já mencionado aqui, repensar a estrutura de definição da crítica de arte hoje requer entender que a escrita em jornais, revistas e sites de arte são apenas alguns dos meios possíveis para pensar o campo. Compreendendo outras possibilidades e lugares para a crítica de arte, recomendamos alguns projetos que promovem reflexões sobre as artes, podendo ser vistos também como contribuições para a crítica. 

A revista de arte e cultura O Menelick 2º Ato, criada em 2007 por uma equipe que de pesquisadores e artistas, sob a coordenação geral do jornalista Nabor Júnior e a antropóloga, artista da dança e mobilizadora cultural, Luciane Ramos Silva, tem por propósito refletir sobre a produção artística e cultural afro-diaspórica.

Com mais de 20 edições publicadas, a revista já apresentou textos que remetem às artes visuais no brasil e no estrangeiro, contando com autorias de importantes pesquisadores, como o curador e antropólogo Alexandre Araujo Bispo, o curador Claudinei Roberto, a artista, curadora e professora do curso de Artes visuais na UFMG Janaina Barros, entre outros.  

A crítica e reflexão sobre as artes não se faz apenas em escritas. E foi entendo isso, que a Rádio Yandê tem propagado através de suas ondas sonoras debates sobre o fazer artístico entres as sociedades indígenas. Algumas das reflexões realizadas na rádio também ganham o campo da escrita como forma, e podem ser lidas diretamente na página da rádio.

Compreender a oralidade como modo de construção de conhecimento e o debate coletivo como ferramenta para a construção das artes contemporâneas é um dos principais desejos da  equipe de coordenação do projeto, que conta com artistas, curadores, pesquisadores, jornalistas, ativistas, entre outros.

Para citar alguns desses interlocutores, destacamos a jornalista, artista, ativista e mestre em direitos humanos Daiara Tukano; o comunicador e artista Indígena Anápuàka; e a jornalista e poeta Renata Aratykyra Tupinambá.  

As redes sociais, que assumiram um papel relevante para uma circulação mais democrática das artes, também são espaços que vem sendo utilizado por pesquisadores, curadores e artistas para democratizar seus escritos críticos em artes. A compositora, cantora, artista visual e ativista Rosa Luz utiliza as redes sociais para ampliar a percepção das estéticas e produções artística de autorias LGBTQIA+ com textos e análises críticas. A artista aproveita o espaço também para denunciar transfobias e silenciamentos impostos aos artistas LGBTQIA+, promovendo discussões importantes e que ainda encontram resistência por alguns setores das artes. 

Tais projetos, assim como os profissionais mencionados aqui podem nos auxiliar no entendimento de um campo contemporâneo mais aberto e progressista para a crítica de arte. Não buscamos aqui criar verdades em torno do que é ou não a crítica de arte hoje, se é boa ou ruim, ou de quem faz ou deixa de fazê-la. Queremos suscitar provocações e indicar possibilidades de ampliar as estruturas excludentes já tão arraigadas e consolidadas no campo das artes brasileiras.


Luciara Ribeiro é educadora, pesquisadora e curadora. Mestra em História da arte pela Universidade Federal de São Paulo e pela Universidade de Salamanca. Graduada em História da Arte pela Universidade Federal de São Paulo. Interessa-se por questões relacionadas à decolonização da educação e das artes e pelo estudo das artes não ocidentais, em especial as africanas, afro-brasileiras e ameríndias. 

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