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A pandemia da discriminação de gênero e raça

Por Paulo Varella - março 23, 2020
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No programa solo de hoje vou falar sobre um assunto delicado, mas necessário. O que acontece quando pessoas são diferenciadas por crenças, tradição, superstição e racismo?

“Se você inovar o suficiente, trabalhar duro e se tiver um pouco de sorte, você chega lá”.

Se você for homem e branco, talvez isto aconteça sim. Mas, e se você não for? 


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Transcrição do podcast

Quão arraigada em nossa cultura, está a separação de raça e gênero? 

Se você pensar bem, uma das coisas que mais fazemos é tomar decisões com base em como a pessoa com a qual estamos interagindo são diferentes do que esperávamos.

Então, se você faz negócios com alguém da Bolívia e as coisas não dão certo. Você pode decidir que não vai mais fazer acordos com bolivianos.

Talvez você não devesse fazer acordos com pessoas que não cumprem a palavra.. e os bolivianos são apenas uma distração nesse assunto.

Então, repetidamente nos últimos séculos, aceitamos, usando esta mesma analogia, que as vozes dominantes na nossa cultura decidiram que as mulheres, negros e mestiços ou pessoas com deficiências, recebam uma espécie de asterisco ao lado dos seus nomes. Como se fossem uma exceção!

O que realmente estamos fazendo é falar das diferenças facilmente percebidas. Porque, no fundo, todos nós somos diferentes. 

Em cima de tudo isto adicionamos mais um problema. O que acontece quando a renda também é adicionada neste mix?

Com este nosso instinto de separar as pessoas com base em como elas se parecem, como nasceram e com o que nasceram, as diferenças se agravam pelo fato dessas pessoas geralmente receberem menos.

Por isso falamos sobre privilégios dos brancos. Muitas pessoas, assim como eu, que se beneficiam deste privilégio, às vezes nem percebem isto. Porque quem faz parte da minoria privilegiada não percebe os impedimentos.

O que definitivamente está acontecendo, sem dúvida, é que as minorias privilegiadas que estão competindo para entrar em uma instituição, realizam aquele evento, são tratadas de maneira justa.

Já as outras pessoas estão sendo impedidas. Elas estão sendo colocadas para trás o tempo todo. E, não é nada que alguém com privilégio perceba.

Uma das crises do nosso tempo, e certamente existem muitas delas, é que ampliamos nosso instinto de culpar os resultados com base em fatores externos; de colocar rótulos em coisas e pessoas que provavelmente não têm nada a ver com o que realmente está acontecendo. 

Deixa eu voltar a este ponto em um instante. Antes quero falar sobre duas pessoas que admiro e que escreveram muito sobre este assunto.


No século XIX, o filosofo John Stuart Mill escreveu sobre o utilitarismo e sobre a liberdade. Ele falava que o bem para todos está na felicidade, e ela requer a liberdade individual.

Em 1869 no livro Sobre a liberdade e A sujeição das mulheres, ele falava que a liberdade é importante para todos, não só adultos homens, mas também mulheres e minorias.

O que ele queria mudar, entretanto, era o completo pacote de práticas e opiniões o que negava a mulher a oportunidade de igualdade na educação e igual acesso ao mérito a todas as ocupações e posições de influência.

Em busca de melhorar a vida da mulher, Mill tinha 50% da população interessada em sua filosofia. Mas o que ele realmente queria era direcionar para 100% da humanidade.

Ele escreveu sobre a injustiça contra a mulher, e os danos feitos para as vidas delas pelas condições existentes, mas ele escreveu na mesma quantidade sobre a perda sofrida por todos.

A repressão ao talento das mulheres é uma tirania a elas e um detrimento para a sociedade

Ele também falava que os homens perdem como indivíduos, frequentemente em formas que eles não percebem, o que já é um enorme  estrago.

Alguns homens podem pensar que estão ganhando, mas a verdade é que todos estão perdendo.

Considerando o nosso tópico, seria estranho falar somente de um texto escrito por um homem.


Existe uma filósofa obrigatória para eu falar. Simone de Beauvoir, em seu livro O Segundo sexo, dividido em 2 volumes enormes, foi uma das grandes fontes de inspiração para mim e para os textos feministas desde então.  Com certeza foi um dos livros mais influentes do século XX, na minha opinião.

Assim como o John Stewart Mill, Simone de Beauvoir estava preocupada com a liberdade da mulher,

Ao contrário do Mill, ela não estava particularmente preocupada com a conexão entre a liberdade e a felicidade. A Simone se manteve na tradição de que como reagimos às circunstâncias, é uma decisão livre para cada um de nós. 

A Simone falava que a mulher e o homem se complementam e o entendimento de ambos, depende disto. Quando um é o subordinado do outro, a situação se torna complicada e potencialmente prejudicial.

As coisas dão muito errado, quando um homem escraviza uma mulher pensando que isto é bom para ele e ela aceita a escravidão acreditando que esta é a única escolha para ela. 

Então, na última pagina do livro, vem uma sentença, que mesmo sendo escrita por Bauvoir, poderia ter sido escrita por Mill.

Quando nos abolimos a escravatura de metade da humanidade, junto com todo o sistema hipócrita que isto implica, então a divisão da humanidade vai revelar a sua significância genuína e o casal humano vai mostrar a sua forma verdadeira.

Ele, vindo do lado do utilitarista e ela de uma formação completamente diferente (o existencialismo de Hegel), os dois terminam chegando a uma conclusão muito parecida. Isto nos faz quase pensar que talvez ambos estejam certos.


Há pouco tempo atrás, as orquestras sinfônicas costumavam fazer audições abertas, onde o artista senta em frente aos seus examinadores.

Pra tentar fugir do preconceito arraigado em todos, quando eles começaram a fazer audições às cegas, o que é simples na música clássica, de repente, da noite para o dia, a porcentagem de mulheres que frequentavam orquestras subiu dramaticamente.

Mas subiu o suficiente? Não.

Já nas artes plásticas, isso não funciona tão bem. O mercado de arte, hoje, em dia, termina sempre privilegiando um pouco os artistas homens. Para você ter uma ideia, vou passar uma lista dos artistas plásticos mais bem pagos hoje:

  • Damien Hirst (400 milhões de dólares)
  • Jeff Koons (300 milhões de dólares)
  • Jasper Johns (300 milhões de dólares)
  • David Choe (200 milhões de dólares)
  • Takashi Murakami (100 milhões de dólares)
  • Anish Kapoor (85 milhões de dólares)
  • Antony Gormley (50 milhões de dólares)
  • Gerhard Richter (40 milhões de dólares)
  • David Hockney (40 milhões de dólares)

Não é uma coincidência que ainda não temos a mesma quantidade de mulheres ou negros nesta lista. Nas artes e na música, isso só reflete o que acontece na vida real.

Se você é negro ou mulher, por exemplo, como é andar pela rua e ver alguém na sua frente mudando para a outra calçada porque tem medo de você? Como é interagir com um entrevistador de emprego que olha para as suas pernas e pergunta se você tem namorado? Como é interagir com um policial, um juiz ou um funcionário do governo e ter o benefício da dúvida contra você?

Essas pequenas cutucadas, algumas não tão minúsculas, afetam nossa saúde e até a nossa liberdade. Elas minam a nossa capacidade de confiar em alguém e criam uma sensação de raiva e revolta.


E então chegamos a essa ideia de utilização de ativos (ou bens). A utilização de ativos é fácil de entender se você tem uma empresa. 

No caso de uma sociedade, os ativos são o seu povo, no presente e no potencial. Existem bilhões de pessoas neste mundo, algumas delas vão acabar uma doença, outros vão salvar uma vida. Alguém vai cuidar de alguém, talvez da sua avó. 

E se atrapalharmos o caminho, se o prejudicarmos, se ensinarmos a não confiar em nenhum sistema, a não se incomodar, a não se esforçar…Desperdiçaremos este ativo, eles perdem e todos perderíamos. 

Então, sim, há uma crise, e a crise não é organizada por uma agenda central, é uma crise endêmica, uma pandemia, está em todo lugar que olhamos. Mesmo no local onde todos são da mesma raça. Mesmo em clubes onde todos são do mesmo sexo. 

É agravada, porque nós, seres humanos, somos “programados” para fazer julgamentos rápidos e, em seguida, essa programação é amplificada pela nossa cultura, e ampliada pelo fato da publicidade e das piadas, há muito tempo e em muitos casos, ainda serem misoginistas e racistas.

Não precisamos adotar uma cultura que insista que não há segunda chance, onde quando alguém é colocado em uma categoria, ela precisa permanecer nela. Fazer isto, além de ser imoral e injusto, é um péssimo uso de recursos sociais.

Classificar as pessoas com base na aparência e em como interagimos com elas uma vez, ou como o mundo interagiu com ela no passado por uma escolha feita ha anos atrás, priva a todos nós a chance de melhorar as coisas.

Mesmo se nos esforçarmos para ser perfeitamente justos o tempo todo, nossos instintos entrarão em ação porque rotulamos categorias de objetos, de pessoas, e portanto, se queremos desfazer isso, temos que perceber que isto precisa mudar, e precisamos começar agora. 

Diagnosticar é uma coisa, curar é outra. Temos que começar por onde estamos, bem na nossa frente. Isto deve começar com o benefício da dúvida.

Precisamos descobrir como ajudar outras pessoas que não têm a mesma experiência e não se pareçam conosco. 

Mas como dar o benefício da dúvida, sem correr riscos? 

Hoje é mais fácil do que nunca: medir a produção. Hoje, estamos medindo a produção a cada clique, a cada segundo, a cada toque de teclado.

É possível deixar de lado nosso preconceito apenas o tempo suficiente para esperar e ver os outros chegarem aonde chegamos.

Espero que possamos chegar neste ponto mais rapidamente do que estamos agora, porque o progresso que fizemos nos últimos 100 anos foi tremendo, mas não é nada comparado ao que poderia ser ou deveria ser.


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