Artigos Acadêmicos

Pintura inglesa, o Iluminismo e a Estética no século XVIII

Os artistas ingleses, que conviviam mais intimamente com o campo e com as novas ideias iluministas, caminharam para um estilo diferenciado no período.

Por Fatima Sans Martini - maio 25, 2020
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A ideia de que o homem poderia chegar à verdade, dominando a natureza através da razão e da experiência, ganhou força nos séculos XVII e XVIII. Assim, novos conceitos[1] passaram a ser aplicados sistematicamente nos vários campos do saber.

O Iluminismo[2] surgiu com ideias inovadoras, propondo-se a resolver os problemas sociais, políticos, econômicos e culturais. Filósofos formularam teorias dos direitos do homem; a enciclopédia foi criada para se difundir novas ideias e os escritores levaram à monarquia suas obras baseadas nos direitos dos cidadãos e na abolição de antigos privilégios.

A teoria, a fruição e os conceitos de arte e beleza foram amplamente comentados no século XVIII por ensaístas e filósofos[3]. Os críticos passaram a acreditar que a arte deveria ser julgada segundo a sensibilidade, sem a imposição dos cânones clássicos. Conceitos como gosto, apreensão estética e sentimento como fonte de experiência estética foram descritos. Teorias seguiram caminhos correlatos em relação às questões da emoção, apreciação, intuição, imaginação e percepção relacionados à apreensão da beleza.

As discussões[4] sobre a Estética, nesse período, tanto em extensão como em profundidade, foram das mais importantes heranças da filosofia da arte para os tempos modernos.

Durante o século XVIII, pouco a pouco, a cidade prevaleceu sobre o campo e grandes massas humanas começaram a concentrar-se nos centros urbanos. O espírito renovador conduziu a um profundo estudo das ciências em que o progresso foi enorme, enquanto os artistas trataram frequentemente da volta à natureza e às cenas de gênero.

Entre os franceses, Jean Antoine WATTEAU (1684-1721), Jean-Baptiste Siméon CHARDIN (1699-1779); François BOUCHER (1703-1770) e Jean-Honoré FRAGONARD (1732-1806) se dedicaram à pintura ora intimista ora festiva, em que a atmosfera era peculiarmente erótica, bem ao gosto da sociedade francesa da época.

As pinturas do Rococó na França do século XVIII remetem ao prazer e aos caprichos da sociedade.

No entanto, os artistas ingleses, que conviviam mais intimamente com o campo e com as novas ideias iluministas, caminharam para um estilo diferenciado no período, muitos deles se destacando no gênero retratos, um movimento impulsionado a partir da segunda metade do século XVIII. Entre eles: William HOGARTH (1697-1764), Sir Joshua REYNOLDS (1723-1792), Thomas GAINSBOROUGH (1727-1788), Allan RAMSAY (1713-1784), George ROMNEY (1734-1802) e Francis HAYMAN (1708-1776)


William HOGARTH (1697-1764)

O inglês Willian Hogarth, um dos mais brilhantes artistas do começo do século, assimilou o livre manuseio da tinta e das cores pastel da arte rococó escarnecendo implacavelmente as convenções inglesas.

Hogarth publicou sua primeira impressão satírica em 1721 e sua primeira grande série em 1726. A série de pinturas e gravuras com os modernos assuntos morais ressaltou a veia irônica do artista e o tornou conhecido por toda Inglaterra.

Bem-humorado e observador afiado do comportamento humano, Hogarth representou a vida exuberante nas ruas de Londres, o entretenimento de ambos os sexos, as tradições populares e a decadência da sociedade.

William HOGARTH (1697-1764).  O casamento de Stephen Beckingham e Mary Cox, 1729. Óleo sobre tela, 128.3x102.9. The Metropolitan Museum of Art, Nova York, EUA.
William HOGARTH (1697-1764). O casamento de Stephen Beckingham e Mary Cox, 1729. Óleo sobre tela, 128.3×102.9. The Metropolitan Museum of Art, Nova York, EUA.

William Hogarth representa o grupo de pessoas presentes no casamento do advogado londrino Stephen Beckingham. A pintura é uma das primeiras no gênero em que um grupo de pessoas conversam entre si (roda de conversa). Beckingham e sua noiva são flanqueadas por membros de suas famílias.

O casamento ocorreu em St. Benet, mas o cenário foi baseado na igreja de St. Martin-in-the-Fields em Trafalgar Square, em Londres.

Embora Hogarth tenha sido procurado por sua habilidade de capturar semelhanças, tanto nos retratados como nos acontecimentos, o evento solene retratado parece ter sido aquém em comparação com a realidade dos famosos súditos ingleses. (THE METROPOLITAN MUSEUM OF ART, Nova York, EUA. Tradução nossa[5])

O tom satírico de Hogarth pode ser encontrado no pesado clérigo ou no cavaleiro com ambas as mãos apoiadas na bengala. 

William HOGARTH (1697-1764) Uma cena da Ópera do Mendigo ,1728/1729. Óleo sobre tela, 51.1x61.2. National Gallery of Art, Washington, EUA.
William HOGARTH (1697-1764) Uma cena da Ópera do Mendigo[6] ,1728/1729. Óleo sobre tela, 51.1×61.2. National Gallery of Art, Washington, EUA.

Hogarth representa um importante divisor de águas na arte britânica, marcando o fim da predominância centenária de pintores holandeses e flamengos na Inglaterra e o início de uma escola nativa. Embora seu estilo tenha sido influenciado por artistas do estilo Rococó francês, Hogarth era um realista e crítico social cujos assuntos vieram das classes médias de Londres enquanto os observava nas ruas, em cafeterias ou no teatro.

Na cena, esposa e amante imploram pela vida do anti-herói Macheath, preso por roubo.

As “moralidades” de Hogarth pregam, por meio de exemplos horríveis, as boas virtudes burguesas: mostram como uma rapariga do campo sucumbe às tentações da Londres elegante; os males das eleições corruptas; aristocratas decadentes que vivem apenas para o prazer, casando com ricas herdeiras de condição social inferior, apenas pelas suas fortunas (que não tardam a dissipar) (JANSON, 1992, p. 561)


Sir Joshua REYNOLDS (1723-1792)

O talento de Sir Joshua Reynolds, retratista cuidadoso e competente, desenvolveu-se, sobretudo, após estudar a Antiguidade clássica e os grandes mestres da pintura Renascentista e Barroca.

A passagem pela Itália marcou toda sua obra, principalmente as cores e efeitos da luz contidas nas pinturas venezianas de VERONESE[7] e TINTORETTO[8].

Influenciado pelo gênero de pintura de retratos, principalmente pelas obras do veneziano TICIANO[9]e do artista flamengo Sir Anthony VAN DYCK[10], Reynolds já fixado na Inglaterra, alcançou sucesso com a realização de retratos plenos de vigor e naturalidade, introduzindo a tradição de retratos ingleses.

Com a fundação da Royal Academy School of Arts[11] em 1768, Reynolds foi eleito seu primeiro presidente e condecorado pelo rei Jorge III. Na presidência, guiou a política da academia com grande habilidade, reforçou os discursos referentes à cor e forma e se tornou conselheiro dos futuros artistas do período.

Em 1781, Reynolds visitou Flandres e Holanda, onde estudou o trabalho do pintor flamengo Peter Paul RUBENS[12], o que parece ter afetado seu próprio estilo, aplicando nas obras posteriores poses diferentes e uma superfície mais rica.

Sir Joshua REYNOLDS (1723-1792) Capitão George K.H. Coussmaker (1759-1801), 1782. Óleo sobre tela, 238.1x145.4. The Metropolitan Museum of Art, Nova York, EUA.
Sir Joshua REYNOLDS (1723-1792) Capitão George K.H. Coussmaker (1759-1801), 1782. Óleo sobre tela, 238.1×145.4. The Metropolitan Museum of Art, Nova York, EUA.

Thomas GAINSBOROUGH (1727-1788)

Formal, Thomas Gainsborough pintou obras primas apoiado no estilo Rococó, retratando pessoas com a graça e espiritualidade da época, unindo a pintura de paisagens idílicas e pastorais francesas ao fundo. Apaixonado pelas pinturas paisagísticas produzidas na Holanda do século XVII e populares na Inglaterra, o pintor nunca permitiu que em suas obras a paisagem ficasse em segundo lugar.

Suas paisagens arrumadas poeticamente antecipam o movimento paisagista do final do século XVIII e início do século XIX, pelas mãos dos principais artistas ingleses: John CONSTABLE[13] e Joseph Mallord William TURNER[14].

Ao longo da década de 1760, influenciado pelas pinturas de Sir Anthony van Dyck e Peter Paul Rubens, Gainsborough realizou algumas obras em que as cores se tornam mais ricas mescladas aos tons pasteis e as árvores enchem a paisagem buscando uma mistura de realidade e idealização poética, enquanto as figuras perdem o acabamento preciso. Segundo Janson (1992, p. 562) a equilibrada graça e postura dos retratado condizem:

“em termos do século XVIII, às poses aristocráticas de van Dyck, e uma técnica fluida e translúcida que lembra Rubens.”

Eleito membro da Royal Academy School of Arts em 1768,inventivo e independente, Gainsborough, continuou a marcha rumo ao romantismo e às pinturas consideradas chiques pela sociedade.

Thomas GAINSBOROUGH (1727-1788) Paisagem com Montanha e Ponte. ca. 1783/84. Óleo sobre tela, 113x133.4. National Gallery of Art, Washington, EUA. Disponível em: https://www.nga.gov/collection/art-object-page.114.html Acesso em: 14 mar. 2020.
Thomas GAINSBOROUGH (1727-1788) Paisagem com Montanha e Ponte. ca. 1783/84. Óleo sobre tela, 113×133.4. National Gallery of Art, Washington, EUA. Disponível em: https://www.nga.gov/collection/art-object-page.114.html Acesso em: 14 mar. 2020.

Nos últimos anos Gainsborough voltou-se quase definitivamente à pintura paisagística com temas pastorais, impregnadas de grande fantasia e poesia.

Copiadas por inúmeros artistas, as pinturas de Gainsborough antecipam a pintura de paisagens e a Poética do Pitoresco[15], ao longo do século XIX.


Veja também


Referências

JANSON H. W. História da Arte. Tradução J.A. Ferreira de Almeida; Maria Manuela Rocheta Santos. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1992. 823 p.

NATIONAL GALLERY OF ART,Washington, EUA. Disponível em: https://www.nga.gov/collection/art-object-page.61392.html Acesso em: 14 mai. 2020.

NATIONAL GALLERY OF ART,Washington, EUA. Disponível em: https://www.nga.gov/collection/art-object-page.166448.html Acesso em: 14 mai. 2020.

NATIONAL GALLERY OF ART,Washington, EUA. Disponível em: https://www.nga.gov/collection/art-object-page.114.html Acesso em: 14 mai. 2020.

THE METROPOLITAN MUSEUM OF ART, Nova York, EUA. Disponível em: https://www.metmuseum.org/art/collection/search/436656 Acesso em 14 mai. 2020.

THE METROPOLITAN MUSEUM OF ART, Nova York, EUA. Disponível em: https://www.metmuseum.org/art/collection/search/437447 Acesso em: 14 mai. 2020.


[1]     Francis Bacon (1561-1626) e René Descartes (1596-1650) foram os primeiros estudiosos que investigaram e analisaram os fenômenos naturais à luz da razão e definiram um método cientifico ressaltando o valor da experiência, chegando a origem da ciência moderna através de Galileu Galilei (1564-1642), Johannes Kepler (1571-1630) e Isaac Newton (1642-1727).

[2]     A Era da Razão, também chamado de Iluminismo, deu seus primeiros passos na Europa no século XVIII e difundiu-se por todo mundo ocidental. Os pensadores iluministas se opunham ao poder absoluto dos reis e da Igreja católica por meio da razão ou pensamento lógico e da ciência. 

[3]     O filósofo e historiador inglês, David Hume (1711-1776), por exemplo, acreditava que os preconceitos de idade e tempo, o temperamento e a sociedade não podiam interferir na reação à obra de arte. Esse pensamento permaneceu e foi fundamental para os novos conceitos modernistas.

[4]     A disciplina e os conflitos sobre a Estética foram descritos por Alexandre Gotlieb Baumgarten (1714-1762) em 1735 e desenvolvidos em A Crítica do Juízo, por Immanuel Kant (1724-1804) em 1790. Na obra filosófica, Kant indicou a origem do conflito entre o padrão universal de gosto e o reconhecimento de que sentimento e emoção são essenciais para a apreciação estética. A definição de gênio, como aquele que dá as regras na arte e que recebe o dom natural foi descrita por Kant e foi aceita como uma qualidade importante que o artista deve ter para a produção de uma obra de arte. O filósofo alemão, Georg Willhem Friedrich Hegel (1770-1831) continuou a discussão sobre a arte simbólica, clássica e romântica nos Cursos de Estética em que expôs a importância e elevação do espirito representado por meio da arte, em sua forma material.

[5]     This wedding group is one of the artist’s first essays in the fashionable genre of the conversation piece. Beckingham, a London lawyer, and his bride are flanked by members of their families. The marriage took place at St. Benet’s but the setting is based on the church of St. Martin-in-the-Fields in Trafalgar Square. Although Hogarth was sought after for his ability to capture a likeness, the solemn event depicted here seems to have had limited appeal to him by comparison with his famous satirical subjects. The Metropolitan Museum of Art, Nova York, EUA.  Disponível em: https://www.metmuseum.org/art/collection/search/436656 Acesso em: 14 mai. 2020.

[6]     The Beggar’s Opera do poeta e dramaturgo inglês John Gray e sonorizada pelo compositor alemão Johann Christoph Pepusch. Estreou em 1728 e foi chamada na época de ópera-balada. Músicas conhecidas pelo público foram usadas ao invés das complexas músicas das óperas italianas. Além disso os personagens eram populares, muitas vezes marginalizados, contracenando com funcionários e políticos corruptos.

[7]     As raízes do estilo de pintura de Paolo VERONESE (1528-1588) localizam-se na antiga arquitetura e escultura de Verona, sua terra natal. Em Veneza, o artista foi amplamente influenciado pela narrativa e cores das obras de Ticiano, executando inúmeras obras em larga escala, a maioria com cenas de festas, plenas de energia e ricas de detalhes muitas vezes irreverentes, com temas religiosos e mitológicos. 

[8]     Veneziano e maneirista, Jacopo Comin, conhecido por TINTORETTO (1518-1594) empregou as cores brilhantes e fortes, típicas dos artistas da região, aplicadas com uma pincelada rápida e audaciosa. Seus quadros são impregnados de emoção e profundamente cativantes.

[9]     O artista dominou a pintura veneziana no período denominado de Renascimento tardio e atravessou o estilo maneirista, com uma qualidade insuperável. TICIANO (c.1488/90-1576) ou TIZIANO Vecellio, Titian ou Titien é um dos grandes retratistas do período.

[10]    Criterioso, com grande clientela e extremamente produtivo, Sir Anthony VAN DYCK[10] (1599-1641) desenvolveu e renovou a técnica de representação de retratos refinados e aristocráticos, combinando o que tinha visto em TICIANO, VERONESE e RUBENS. Mais de van Dyck em: https://arteref.com/artigos-academicos/van-dyck/

[11]    Fundada em 1768 pelo rei da Grã Bretanha e Irlanda, Jorge III (1738-1820), a Royal Academy School of Arts teve como primeiro presidenteSir Joshua REYNOLDS (1723-1792) ao lado de cerca de quarenta outros membros formados por pintores, escultores e arquitetos ingleses, entre eles: Thomas GAINSBOROUGH (1727-1788), Willian BLAKE (1757-1827), John CONSTABLE (1776 -1837), Joseph Mallord William TURNER (1775‑1851), Richard WESTALL (1765-1836) e Sir Thomas LAWRENCE (1769-1830)

[12]    Na obra Barroca do artista flamengo, Peter Paul RUBENS (1577-1640), as alegorias, os episódios bíblicos, as cenas mitológicas, os eventos históricos, os retratos e as paisagens se destacam vivas e atuais, nas telas gigantescas. Famoso, no seu estúdio na Antuérpia, foram treinados inúmeros artistas. Mais de Rubens em: https://arteref.com/artigos-academicos/peter-paul-rubens/

[13]    Um dos mais importantes representantes da paisagem romântica aplicada na Inglaterra no final do século XVIII e início do século XIX, John CONSTABLE (1776 -1837) apresenta uma pintura comedida e simples, sem pretensão de ser mais impressionante que a própria natureza.

[14]    As paisagens produzidas por Joseph Mallord William TURNER (1775‑1851) extremamente românticas são plenas de luz, cor e movimento.

[15]    A Poética do Pitoresco define a categoria estética das obras paisagísticas em que a natureza é de certa forma arrumada para se adaptar aos sentimentos humanos. Viria a dominar a pintura alemã, francesa e inglesa, a partir do final do século XVIII e início do século XIX, quando as paisagens se associam às ruínas e antigas construções, às frondosas árvores que cortam o céu azul com sublimes nuvens e às estradas sinuosas que abrigam pequenos caminhantes. Um romantismo de acordo com as ideias iluministas.

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Mestre em Artes Visuais com Abordagens Teóricas, Históricas e Culturais pela UNESP. Pós-graduação em História da Arte pela FAAP-SP. Formada em Artes Plásticas. Experiência profissional: Projetista em Design de Interiores. Experiência acadêmica: nas disciplinas de Projetos, Desenho, História do Mobiliário e História da Arte nos cursos de Arquitetura e Design de Interiores. Professor das disciplinas de Estética e História da Arte Mundial e Brasileira no Curso de Artes da Unimes, Universidade Metropolitana de Santos, SP

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