Tudo pode ser considerado arte?
Principalmente sob influência dos ready-mades de Duchamp, as preocupações estéticas e materiais passaram a ter um papel secundário na arte.
Tudo pode ser considerado arte? O que é arte? A partir do “invento” dos ready-mades e ascensão da arte contemporânea – principalmente da arte conceitual – tivemos uma enorme subversão e ruptura no que consiste o significado de arte.
Vamos contextualizar esse debate e mostrar que não é uma questão simples de ser respondida.
No início do século XX, durante o contexto da Primeira Guerra Mundial e das transformações políticas, sociais e econômicas na Europa, tivemos o surgimento das vanguardas artísticas.
Uma delas foi o Dadaísmo, liderado por Marcel Duchamp, movimento que tinha como intuito protestar contra os estragos trazidos da guerra, denunciando de forma irônica o horror que estava acontecendo.
Sendo a negação total da cultura, o Dadaísmo defendia o absurdo, a incoerência, a desordem, o caos. Sua principal representação ficou marcada pelos ready-mades – objetos já fabricados presentes no cotidiano, sem valor estético, expostos como obras de arte em espaços especializados.
Obras em Destaque
Em 1917, Duchamp apresentou para o Salão dos Artistas Independentes (Nova Iorque) um objeto intitulado “Fonte”. A obra foi inscrita sob um pseudônimo e não foi aceita pela organização: tratava-se de um mictório invertido, assinado e com uma data na parte inferior.
Aquilo era arte?
Ainda hoje isso causa estranhamento. Na época, nem se fala. Apenas pinturas e esculturas podiam ser classificadas como obras artísticas.
O trabalho apresentado por Duchamp, contestador dos padrões hegemônicos da arte naquele momento, foi extremamente questionado e mal recebido pelo público.
Entretanto, sua transgressão permitiu a formação de questionamentos importantíssimos, por exemplo:
- O que é arte?
- Por que uma pintura é arte e um mictório não?
- É necessária uma entidade (museu) para validar o que é um objeto artístico? Se sim, por que eles têm essa autoridade?
- É necessária habilidade técnica para qualificar uma arte?
Essas perguntas entram em uma espiral infinita se irmos a fundo. Essa foi a grande contribuição de Duchamp. Ele abriu portas para novos estilos de artistas e obras, ressignificou o próprio conceito de arte.
Temos, então, o lançamento das bases para o que viria a se tornar a Arte Conceitual, um dos pilares da Arte Contemporânea.
O movimento baseia-se na noção de que a essência da arte é uma ideia ou conceito, e que podem existir distintas formas de representá-la, até mesmo na ausência de um objeto.
Questiona-se a noção de arte em si; tanto que alguns artistas acreditam que a arte é criada pelo espectador, e não pelo artista ou pela própria obra.
Como ideias são a principal característica, as preocupações estéticas e materiais passam a ter um papel secundário. Artistas conceituais reconhecem que toda arte é essencialmente conceitual.
Saiba mais sobre Arte Conceitual
Exemplos marcantes que seguem essa linha de raciocínio que rompe com os critérios tradicionais e formalistas (qualidades formais de uma obra — linha, forma e cor — são autossuficientes para sua apreciação) da arte:
1) Artist’s Shit”, ou “Merda de Artista”
Esse é um trabalho de 1961 feito por Piero Manzoni, que consiste em 90 latas cheias de fezes do artista, cada uma pesando cerca de 30 gramas e medindo 4,8×6,5 cm, rotuladas com o título da obra em diversos idiomas. A obra chegou a ser vendida por 70 mil euros durante um leilão em 2008.
2) Performances de Chris Burden
Chris Burden (1946 – 2015) produziu algumas das obras mais chocantes da história da arte americana do século XX.
Ele queria retratar a realidade da dor para o público em um momento em que as pessoas se tornaram insensíveis à infinidade de imagens na televisão de soldados americanos feridos e mortos no Vietnã, e ao domínio geral da violência nas imagens da mídia.
Podemos ver isso nas seguintes performances:
Na imagem da esquerda, Chris é baleado no braço; na direita, ele desliza sobre vidros quebrados – apenas de cueca – com as mãos amarradas atrás das costas.
3) Os Parangolés de Hélio Oiticica
O Parangolé é uma espécie de capa que se veste, com textos, fotos, cores e que serve como uma Obra-ação-multisensorial.
“O objetivo é dar ao público a chance de deixar de ser público espectador, de fora, para participante na atividade criadora”, diz o artista.
O Parangolé é “anti-arte por excelência”, não se pode ir numa exposição de Parangolés, o espectador veste a obra e a obra ganha vida através dele, é capacidade de auto-criação, de expansão das sensações e rompimento.
4) “Inserções em circuitos ideológicos”, de Cildo Meireles
O objetivo do trabalho era criar um sistema de circulação e troca de informação que não dependia de nenhuma espécie de controle centralizado. As séries de inserções transmitiriam informações por uma variedade de circuitos alternativos, como garrafas de Coca-Cola, pentes para cabelos Black-Power, cédulas de dinheiro, etc.
O contexto histórico no qual a obra circula e lhe dá sentido é o Brasil dominado por uma ditadura militar que violou o regime constitucional de 1964. O regime ditatorial, imediatamente, impôs uma forte repressão sobre as expressões artísticas, submetendo-as a uma censura que filtrava todo tipo de informação.
As séries de “inserções em circuitos ideológicos” de Cildo Meireles procuraram explorar alternativas comunicacionais e artísticas para executar uma verdadeira “guerrilha” contra o sistema repressor da ditadura militar.
O legado de Duchamp
Nas palavras de Duchamp, “O ato criador não é executado pelo artista sozinho; o público estabelece o contato entre a obra de arte e o mundo exterior, decifrando e interpretando suas qualidades inatas e, desta forma, acrescenta sua contribuição ao ato”.
Ou seja, o artista funciona apenas na propagação de ideias, e os trabalhos se completam com a subjetividade do espectador.
Como coloca Arturo Danto, a obra Brillo Box (1964), de Andy Warhol, representa uma cristalização dessa nova concepção artística.
Usando a técnica de serigrafia em madeira compensada, o Warhol realizou réplicas exatas de produtos encontrados em lares e supermercados. A obra é uma coleção de peças empilhadas, esculturas que podem ser organizadas de várias maneiras.
Assim, temos a união entre o mundo da arte e o mundo cotidiano através de objetos comuns deslocados de seu verdadeiro espaço.
Conclusão (?)
Não é preciso estudar desenho para fazer arte. Seguindo a linha iniciada por Duchamp e abraçada por outros movimentos vanguardistas, você só precisa criar algo parecido com um pensamento e depois elevá-lo ao nível de um conceito.
É preciso salientar que um objeto comum é diretamente relacionado com sua finalidade. Agora, um objeto-arte, carrega uma grande reflexão; mesmo que estejamos falando do mesmo objeto.
Um mictório num shopping não é a mesma coisa que o mictório de Duchamp. As obras precisam de um contexto para serem dotadas de sentido
Se o exemplo de Duchamp for levado ao extremo, absolutamente tudo poderia ser classificado como arte, o que seria algo perigoso de se dizer.
O debate sobre o que é ou não é arte, é extremamente vasto e continua até hoje. Ainda sim, para validarmos os conceitos são necessários critérios básicos de análise, contextualizações. Caso não, tudo vira arte.
E, se tudo é arte; nada é arte.
E você? O que acha sobre o tema? Tudo é arte? Deixe seu comentário.
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