Artigos Acadêmicos

Cenas de gênero na Holanda do século de ouro

Na Holanda temas que até então tinham sido tratados como acessórios não-essenciais tornam-se agora totalmente independentes.

Por Fatima Sans Martini - janeiro 18, 2024
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O estilo Barroco na Holanda do século de ouro1 desenvolveu-se ligado à classe média trabalhadora e religiosa, no entanto, desvinculada da igreja católica e da arte produzida na Itália. As histórias ligadas à bíblia ocuparam um lugar muito reduzido ao lado de temas, como: cenas de gênero, retratos, paisagens, naturezas-mortas, interiores e vistas arquiteturais.

Enquanto a pintura narrativa bíblica e secular continua sendo a forma artística predominante nos países católicos e naqueles governados por monarcas absolutos, na Holanda temas que até então tinham sido tratados como acessórios não-essenciais tornam-se agora totalmente independentes. Motivos da vida cotidiana, de paisagem e natureza-morta não só formam os acessórios de composições bíblicas, históricas e mitológicas, como adquirem valor autônomo; o artista já não precisa de uma desculpa para retratá-los. (HAUSER, 2003, p. 452-453)

Entre os artistas holandeses que escolheram como prioridade a representação de cenas de gênero e arquitetônicas encontram-se: Jan Havicksz. STEEN (ca. 1626-1679), Johannes VERMEER (1632-1675), Pieter DE HOOCH (1629-1684) e o gravador Adriaen van OSTADE (1610-1685)


Jan Havicksz. STEEN (ca. 1626-1679)

Nascido em Leiden, aos vinte e poucos anos, Jan Steen inscreveu-se na recém-formada Guilda de Saint Luke2, de Leiden. Existem registros que Steen estudou com Jan van GOYEN (1596-1656) em Haia e com o gravador Adriaen van OSTADE (1610-1685) em Haarlem.

Os anos passados em Delft junto do pai, que havia aberto uma cervejaria no local e o contato com diferentes níveis sociais, serviu para Steen como fonte de inspiração e um olhar agudo na execução da maioria dos seus quadros, repletos de alegria, bebida, vulgaridade, ironia e confrontos.

Após a morte do pai, de volta à Leiden, Steen abriu a própria estalagem, e embora em algumas obras ele se representasse em cenas de imoralidade e caos, foi bem casado e sério trabalhador a vida toda. Sua primeira esposa era filha de van Goyen e lhe deu oito filhos.

Cenas de gênero na Holanda; Jan Havicksz. STEEN (ca. 1626-1679) A Família dissoluta, ca. 1663–64. Óleo sobre tela, 108x90.2. The Metropolitan Museum of Art, Nova York, EUA.
Jan Havicksz. STEEN (ca. 1626-1679) A Família dissoluta, ca. 1663–64. Óleo sobre tela, 108×90.2. The Metropolitan Museum of Art, Nova York, EUA.

No centro da composição, o homem com cachimbo é o próprio Jan Steen, que se representa como o divertido marido alheio ao caos doméstico.

O homem entrelaça os dedos com os da empregada doméstica, que derrama uma porção generosa de vinho na taça estendida. A esposa alegre e despreocupada se esparrama na cadeira e pisa sobre uma, provável, bíblia aberta jogada no chão. A velha ama à direita, dormindo, é importunada por um menino, enquanto outro, armado com uma espada, discute com um mendigo na janela.

A bandeira enrolada à esquerda sugere o exército, único refúgio dos jovens. As vidraças ao fundo são decoradas por animais em atividades humanas.

Na obra, A Família dissoluta, Steen apresenta algumas falhas de caráter: preguiça, discórdia, glutonaria, luxúria, jogos de azar, sacrilégio. Vícios, os quais conduzem a um agregado familiar desordenado, embora a abundância de comida indique uma família próspera.

A garrafa quebrada, o instrumento, o jogo de gamão, o prato com comida desperdiçada e o gato sorrateiro, contribuem para a impressão dissoluta.

Mas, um destino desastroso recai sobre as cabeças: a cesta com diversos símbolos: a muleta, as varinhas de palha, a espada, a caneca de pedinte, o badalo de madeira3, o azar representado pela carta com macaco de espadas. Abaixo no chão o relógio marca as horas e alerta para o infortúnio.


Johannes VERMEER (1632-1675)

Pouco se conhece sobre a vida de Johannes Vermeer.

Nascido em Delft, casado com uma jovem católica, o artista se mudou com a sogra para uma casa espaçosa em Oude Langendijk e ali viveu para o resto da vida, ao lado dos filhos.

As circunstâncias financeiras parecem ter sido continuamente difíceis e acredita-se que em algum momento ele tenha arrumado um patrono. Ainda assim, em 1675, endividado, Vermeer teve um colapso e faleceu, deixando dezenove pinturas na sala de pintura e muitas dívidas.

Respeitado em sua cidade, Vermeer trabalhou lentamente, provavelmente produzindo por volta de três pinturas por ano. Os poucos quadros deixados com cenas de gênero, ao contrário de Steen, são silenciosos, sem parábolas, histórias neerlandesas ou provérbios populares.

De acordo com Gombrich (2000) as raras obras do artista apresentam figuras simples no interior das casas holandesas. Naturezas-mortas com seres humanos, pode se dizer, pintados de forma laboriosa e com extrema precisão nas texturas das roupas e objetos. Lento e meticulosos, Vermeer suaviza os contornos, mas mantém a firmeza e solidez numa combinação alcançada por poucos, o que torna suas obras inesquecíveis.

Cenas de gênero na Holanda; Johannes VERMEER (1632-1675) A Carta de amor, ca. 1669-1670. Óleo sobre tela, 44x38.5. Rijksmuseum, Amsterdam, Holanda.
Johannes VERMEER (1632-1675) A Carta de amor, ca. 1669-1670. Óleo sobre tela, 44×38.5. Rijksmuseum, Amsterdam, Holanda.

A pesada cortina recolhida deixa ver o interior de um ambiente no momento em que a empregada entrega uma carta a jovem mulher, elegantemente vestida, com um alaúde no regaço. A cesta com roupas e a almofada de bordado indicam o ambiente familiar. Ao fundo, pendurados na parede dois quadros: um de paisagem e outro de uma marinha. No primeiro plano o par de chinelos e a vassoura. Na sombra, à direita, a cadeira com roupas penduradas no espaldar e os papeis em desalinho sugerem que a casa ainda está por ser arrumada.

A fresca e clara luz que se infiltra da esquerda é o único elemento ativo, operando os seus milagres sobre todos os objetos no seu caminho. Quando olhamos para A Carta é como se um véu nos tivesse sido tirado dos olhos: o mundo cotidiano brilha com uma frescura de joia, belo como nunca o víramos antes. (JANSON, 1992, p. 534)

Johannes VERMEER (1632-1675) Vista das casas em Delft ou a Pequena rua de Delft, ca. 1658. Óleo sobre tela, 54.3x44. Rijksmuseum, Amsterdam, Holanda.
Johannes VERMEER (1632-1675) Vista das casas em Delft ou a Pequena rua de Delft, ca. 1658. Óleo sobre tela, 54.3×44. Rijksmuseum, Amsterdam, Holanda.

À direita na porta de entrada da casa sobradada, uma mulher costura. Ao lado, duas crianças brincam agachadas na calçada.

À esquerda, no beco que separa as duas casas, uma mulher está debruçada sobre uma tina de lavar roupa.

Esta é uma pintura incomum na obra de Vermeer, e notável por seu tempo como um retrato de casas comuns. A composição é tão excitante quanto equilibrada. As paredes velhas com seus tijolos, pintura em cal, e rachaduras são quase tangíveis. (RIJKSMUSEUM. Tradução nossa4)

O tema está ausente na pintura da Pequena rua de Delft. O quadro, menor que meio metro quadrado, se apresenta como um jogo de formas geométricas: os retângulos das janelas e portas, os triângulos dos telhados, os diferentes arcos. Linhas horizontais e verticais, que se juntam à perspectiva localizada no beco e quatro pequenas figuras.

Na simplicidade da composição, as linhas e formas se transformam em imagem poética, resultado da genialidade de Vermeer.


Veja também

https://arteref.com/artigos-academicos/naturezas-mortas-holandesas/

Referências

GOMBRICH, E. H. A História da Arte. Tradução Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: LTC, 2000. 714 p.

HAUSER, Arnold. História Social da Arte e da Literatura. Tradução Álvaro Cabral. São Paulo: Martins Fontes, 2003. 1032 p.

JAN VERMEER VAN DELFT. Disponível em: https://www.vermeer-foundation.org/biography.html Acesso em: 10 out. 2019.

JANSON H. W. História da Arte. Tradução J.A. Ferreira de Almeida; Maria Manuela Rocheta Santos. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1992. 823 p.

RIJKSMUSEUM, Amsterdam, Holanda. Disponível em: http://hdl.handle.net/10934/RM0001.COLLECT.6417 Acesso em: 07 out. 2019.

RIJKSMUSEUM, Amsterdam, Holanda. Disponível em: http://hdl.handle.net/10934/RM0001.COLLECT.6418 Acesso em: 07 out. 2019.

RIJKSMUSEUM, Amsterdam, Holanda. Disponível em: http://hdl.handle.net/10934/RM0001.COLLECT.6419 Acesso em: 07 out. 2019.

THE METROPOLITAN MUSEUM OF ART, Nova York, EUA. Disponível em: https://www.metmuseum.org/art/collection/search/437747 Acesso em 12 out. 2019.


1 O período grandioso e produtivo da arte holandesa, conhecido por Século de Ouro dos Países Baixos ocorreu por volta de 1584 a 1702, no qual a região se tornou uma das mais ricas do mundo, com o florescimento do comércio, da ciência e da cultura. A cultura patrocinada por ricos comerciantes passou por extremo desenvolvimento, produzindo grandes nomes de artistas no período.

2 A Guilda de Saint Luke representava diferentes atividades e o governo regulava o comércio, investindo no mestre, que se responsabilizava pelos aprendizes e pela venda das pinturas e gravuras ali produzidas. A guilda também protegia os membros contra as importações, controlando o mercado de arte, forjando conexões com autoridades cívicas e outras guildas.

3 Um instrumento de alerta, o badalo de madeira era designado para leprosos e atingidos pela peste.

4 This is an unusual painting in Vermeer’s oeuvre, and remarkable for its time as a portrait of ordinary houses. The composition is as exciting as it is balanced. The old walls with their bricks, whitewash, and cracks are almost tangible. The location is Vlamingstraat 40–42 in Delft. Vermeer’s aunt Ariaentgen Claes lived in the house at the right, with her children, from around 1645 until her death in 1670. Rijksmuseum, Amsterdam, Holanda. Disponível em: http://hdl.handle.net/10934/RM0001.COLLECT.6419 Acesso em: 07 out. 2019.

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